Eu e minhas histórias do ônibus. São nessas horas que vejo a humanidade, a sociedade, e as pequenas “psicologias” e afetos do dia-a-dia.
Era um sábado e eu estava voltando do Centro do Rio para casa.
Com o ônibus vazio, sentei logo à frente, e peguei o livro na mochila. A senhora atrás de mim cantava e eu preferi mudar de lugar para ir para um lugar mais silencioso possível e ler sem interrupção.
A primeira pergunta é: até onde vai a nossa (in)tolerância com o barulho das pessoas em volta da gente? A senhora podia estar cantando por diversos motivos. Mas, o principal deles é: não tinha a ver comigo. Mas acaba que eu faço ter a ver comigo e vou para longe.
E, sentada longe da velhinha cantante, consegui terminar o livro que estava lendo. E eis que uma senhora – outra senhora – senta ao meu lado. Era muito, muito magrinha e pequenininha. Não a vi chegando, até ela se sentar.
Eu estava na janela e ela sentou no corredor, e sentou mais na beirada possível, deixando um espaço invisível entre nós duas.
– Com licença, posso me sentar aqui ao seu lado?
– Pode sim. À vontade.
E me vi dando um sorriso tímido.
E eu percebi a delicadeza da velhinha tão pequenininha. E o sorriso dela, tão tímido quanto o meu.
Tive vontade de envolvê-la nos braços, e deixar ela mais pertinho de mim. Aquele espaço entre nós duas era maior do que eu podia suportar. E eu nem me lembrava mais da velhinha cantante lá da frente.
A minha velhinha (sim, ela já passou a ser minha), tirou uma garrafa d’água de dentro da sua bolsa. Tomou um gole e…
– Você aceita um pouco da minha água?
– Não, muito obrigada.
E o distanciamento ia se estreitando e eu já tinha vontade de não mais ficar no meu silêncio (egoísta) do meu livro e de poder dialogar com a minha velhinha, que, agora, já estávamos bem próximas, apesar do espaço vazio ainda entre nós, no banco do ônibus.
E me lembrei que mudei de lugar para a velhinha cantante não incomodar a minha leitura.
Face o oferecimento da água, eu já estava tão tão encantada pela minha velhinha que não iria adiantar mais ler, mesmo nós duas em silêncio, uma ao lado da outra.
Fechei o livro.
– Desculpe! Estou atrapalhando a sua leitura.
– Não… é um prazer.
E, se querer, a minha velhinha encostou parte do seu pé no meu pé. Numa das curvas do ônibus.
E, apesar do diálogo, pela primeira vez, nos tocamos.
– Me desculpe! – ela quase gritou.
E beijou o meu ombro. De novo: beijou o meu ombro!
Vejam só. Ela encostou em mim. Se desculpou pelo encosto. E me beijou. Não é maravilhoso isso? (O quanto de olhar e de afeto deixamos passar no ônibus? Nas pessoas estranhas, desconhecidas, velhinhas?) Eu apenas sorri e não a beijei de volta. Não sei bem por quê. Talvez por timidez. Apesar do meu desejo…
Saltamos no mesmo ponto e, ela se despediu de mim com um beijo estalado de longe. Eu me aproximei e, desta vez, nos abraçamos.
– Obrigada! – eu disse.
– Desculpe! – ela dizia.
E eu ficava me perguntando: desculpe pelo quê? Por ter sido gentil de oferecer a água? Pelo distanciamento ao se sentar ao meu lado e pelo beijinho no meu ombro? Por ter interrompido a minha leitura? (O nosso diálogo e o beijo foram muito melhores e mais enriquecedores do que qualquer leitura, minha velhinha…)
E penso no quanto deixamos as pessoas passarem pelos nossos dias. Pelos transportes públicos. Pela vida. O quanto de olhar devemos ter para com o outro e, também, sobretudo, para com nós mesmos? O olhar para fora também é um olhar para dentro. Ver o outro é me ver também.
Pensar nesse distanciamento – aproximação me vejo como, muitas vezes, estou distante de mim, e preciso estar mais próxima de mim. Ou o quanto preciso me distanciar do livro e me aproximar de quem senta ao meu lado. Ou de não me incomodar com os ruídos alheios e tornar a percepção mais aguçada para que o som do outro me invada. Me ensine. Para que eu receba e eu possa, também, dar beijos e águas e afetos.