De um lado, um relógio de pulso, daqueles que precisa dar corda. Do outro lado, um homem com manias repetitivas. Dentre as manias, está a de colecionar coisas; ou a de deixar os papéis bem lisinhos. Aqueles que envolvem presentes ou ovos de páscoa e que ficam naturalmente amassados. O prazer é desamassar tudo. Quase como consertar os amassos, sem rusgas. Coisas tão simples dão, a este homem, muito prazer.
O relógio fica no pulso deste homem. Mas, enquanto está em casa, o relógio está nas mãos, entrelaçado. Enquanto vê a notícia na TV, também de forma repetitiva, está ele dando corda no relógio, balançando-o ininterruptamente. Tal qual uma contagem mecânica do tempo. O tec-tec-tec quase inaudível, do balançar do relógio no braço da poltrona, dá a ele aquele prazer do desamassar. Aquele prazer quase inconsciente de controlar o tempo. De se saber dono do tempo. Do seu e do tec-tec da mecânica do relógio.
É capaz de comentar a notícia na TV, de dialogar com a esposa, de vociferar contra ou a favor de alguém que aparece ali, na tela em frente, sem cessar o tec-tec inaudível e repetitivo. O tempo? Está nas suas mãos. Na repetição infinita daquele pulsar. Dentro e fora o tempo anda. Dentro do relógio. Dentro de si mesmo. E no ritmado balançar de fora.
Este barulhinho e este movimento já fazem parte da dinâmica daquela família. Daquelas relações.
Mas o tempo correu para esta família. Mais rápido do que se previa. Correu pela idade. Correu pelos cabelos brancos. Correu pelas limitações físicas. Correu até pela lentidão, veja só. Aos muitos anos apareceu a doença. E, com ela, a fragilidade. O tempo, agora, deixou de ter o tec-tec e, com essa correria toda, se tornou mais lento.
Os passos mais lentos. A fala? Mais lenta. O olhar, também mais lento. A alimentação? Mais lenta. Tudo mais lento. Menos a relação. O relógio e o seu tec-tec? Não mais lento. Mas no seu tempo. Agora, parado, na mesinha ao lado.
O objeto de mania foi substituído, agora. Deixou de ser um relógio que mede o tempo, para ser uma mini-lanterna, no formato de uma caneta, que ilumina o que está escuro. “Tem uma luz potente essa lanterninha”, diz ele. A lanterninha fica no bolso, apagada. Quando precisa de luz, basta um clique e lá estará iluminado.
Ou seja: o tempo não é mais importante agora. Pode ser lento. A importância, então, ficou em iluminar a escuridão. A dar luz ao final do túnel. A ter uma luz de esperança neste caminho sombrio que se vive.
A luz, sem o plec dos seus dedos, no entanto, permanece apagada. Quando precisa, ilumina o que caiu no chão. Ilumina o que se perdeu. Ilumina para mostrar, aos outros, como ele pode, ainda que na doença e na lentidão, dar luz aos lugares. Ilumina como a esperançar o caminho que segue para a frente.
Porque é de luz e de sombra que vivemos. De caminhos escuros, sombrios, mas também de iluminar, ainda que com a lanterninha, por onde ainda teremos que caminhar.