Textos

Qual o lugar do atendimento psicológico?

Antes da pandemia, o lugar tinha endereço certo: o consultório. O número do prédio. O número da sala. Aquele sofá de sempre. Com a manta. O mais confortável possível para o paciente.

E aí…, pandemia! Isolamento social! Cada um em suas casas.

O consultório, está lá. Fechado. Vazio. Sem pacientes no sofá.

Os atendimentos, no entanto, não pararam. Pode ser via whatsapp vídeo chamada, via Skype, via Google Meet. A ferramenta, é aquela em que o paciente tem no celular ou computador. E que a gente possa ver-e-ouvir um ao outro.

Mas o local, aquele sofá acolhedor, agora, pode ser qualquer lugar. Literalmente. Já foi carro; já foi play do prédio; já foi no quartinho dos fundos, em casa. Já teve casos de ser na rua, na praça, sentados em um banco na rua.

Com isso tudo, a gente aprende que o lugar acolhedor não é o sofá. Ou a manta. Ou o endereço onde a gente recebe.

Mas o lugar acolhedor é o nosso olhar. A nossa escuta. É quando a gente “dá o play” na sessão e estamos ali, inteiros. Prontos para ouvir. Para acolher, ainda que sem braços, que seja no silêncio, um choro, uma angústia, uma questão mais difícil ou dolorida.

Hoje, atendo pacientes online, que chegaram com a pandemia (a gente não tinha atendimento antes). E que, apesar do distanciamento, o atendimento psicoterapêutico não tem nada distante. E menos ainda frio.

É com o isolamento social que a gente aprende que o lugar e o setting não é um espaço físico. Mas que o lugar é a nossa escuta. A nossa fala. O lugar (qualquer que seja ele) em que o paciente possa (não) falar e ser acolhido, ser dado sentido, caminhos, escutas e partilhas.

Gratidão a cada um que passou pelo “consultório”.

Gratidão aos colegas do grupo do whatsapp, que proporcionaram esta reflexão e possibilidade de texto.

Os óculos do outro

Outro dia eu estava saindo pra almoçar, sozinha.

A saída do prédio onde trabalho é bem ampla e tinha um homem olhando a rua e as pessoas passando. Mais alto que eu, ele usava óculos, cujas lentes eram largas, para os lados. Essas lentes pareciam armazenar os gestos alheios.

Por um segundo, eu também consegui olhar pelos óculos dele. Em uma fração minúscula de tempo tive uma mini perspectiva do que e como ele enxerga. Para mim, pareceu um pouco embaçado. Desfocado. Esfumaçava.

E fiquei andando e vindo pro almoço pensando.

Como seria a nossa perspectiva de olhar se a gente colocasse a lente dos outros? Se vestíssemos o olhar de alguém?

Claro. É algo que não será possível. Muito utópico e viajante.
Além de tudo, seria perturbador conseguir adentrar um local natural de defesa do ser humano, o pensamento.

O que o senso comum diz sobre empatia se parece um pouco com isso. Se colocar no lugar do outro. Sentir como o outro sente. Ser empático com e por.

Mas vestir os olhos já é mais complexo. É ter uma perspectiva não-minha. A via alternativa para recusar a vista é o desespero de se cegar como fez Édipo ao apreender a sua própria verdade, que tomou consciência real de que seus atos, voluntários ou involuntários, afetavam frontalmente a existência do outro. Somos mais interligados do que pensamos.

É fácil ter a perspectiva do cônjuge. Do filho. A gente até gostaria um pouco de colocar os olhos do filho na gente. É o igual. É o pretensamente criado à nossa imagem e semelhança. Esses seriam os olhos de um lugar seguro.

E o que dizer de vestir os olhos do diferente? Do malfeitor? Do assassino? Do pedófilo? Ou do depressivo? Como seria a experiência de despovoar a zona de conforto e tentar sangrar por novas experiências?

Chama um pouco a minha atenção às pessoas que usam óculos escuros. Eles não têm colírio. Penso nisso como uma blindagem, um insulfilm para carros. É a colocação dos próprios olhos no terreno do egoísmo. É privar do outro a chance de dividir o olhar de mundo.

São Longuinho e a luz interna

Hoje um amigo no trabalho estava procurando um parafuso perdido. Num chão de carpete cinza. Um parafuso. Que deve ser também cinza.

– Eu te ajudo a procurar – disse a ele. Sou devota de São Longuinho.

E agarrei o meu santinho, que fica sobre a mesa de trabalho.

Já tem tempo que eu soube que São Longuinho não foi um santo, mas uma crendice popular. De achar “loguinho” aquilo que se busca ou se perdeu.

Pra mim São Longuinho é um santo bem fofo (a imagem dele carrega uma lanterna!) e que ajuda a gente a buscar coisas perdidas. E eu, devota que sou, peço tudo a ele. E pago as promessas, com bem mais que três pulinhos.

Mas hoje, olhando praquela imagem daquele santo carregando a lanterna me veio o pensamento do quanto meu santo amigo se parece conosco, psicólogos.

Parte do nosso trabalho é encontrar, junto com o paciente, coisas ocultas.

Trazer coisas perdidas para a luz dos olhos.

Não somos nós, psicólogos, que buscamos. Muitas vezes, nem sabemos ainda o que é aquilo que se perdeu.

Perdeu o amor? A confiança? A alegria? O emprego? O marido? A direção da vida? A perspectiva? A luta? As suas questões internas? Perdeu a si mesmo? Onde?

E nós, Psis, tal como o santo amigo, temos a lanterna na mão. A gente só ajuda a iluminar os caminhos obscuros. A mergulhar na escuridão do inconsciente para juntos, acharmos onde está aquilo que se perdeu.

Então, minha gente, quero dizer a vocês. Tomem as suas lanternas internas, acendam a sua luz dentro da escuridão. Vocês vão achar coisas sensacionais dentro de si que pode ser que nem sabiam que estavam perdidas!

E o parafuso, do amigo do trabalho? Não achamos.

Mas isso não tem a menor importância. Era só um parafuso! Mais importante é a gente iluminar os caminhos. Os internos.

A história do Breno

Eu pego o Uber quase sempre no mesmo lugar. Mesmo destino. Sempre um motorista diferente.

Dada a hora e o dia cheio de trabalho e o meu cansaço, vou em silêncio, lendo.

Mas desta vez, conheci o Breno, o motorista de apenas 21 anos, que me levava para casa. (Pedi autorização a ele para escrever a sua história. Este não é seu nome real). “Que legal, doutora. Pode escrever sim senhora!”

Sempre peço permissão ao motorista para ligar a lanterna do celular, para ir lendo, ou fazendo alguma coisa ali atrás. Nunca sei se a lanterna vai atrapalhar a direção do motorista.

E foi assim que começou a nossa conversa. Breno achou que eu ia trabalhando ali, no carro. E eu disse que não, que estava lendo um livro emprestado pela Hanna, minha filha. Acabou que a leitura foi para a hora antes de dormir. A conversa estava melhor do que qualquer livro policial.

Breno tem 21 anos. É militar do Exército e trabalha de Uber nos finais de semana. Agora, final do ano, está trabalhando durante a semana para fazer um extra.

Mora na Maré. Na comunidade mesmo. Vivia com os avós, mas agora é casado. Sua esposa tem 22 anos e estuda Administração.

Quando soube que eu era Psicóloga, ele diz que seu sonho é estudar Psicologia, mas que, na vida, fez o caminho inverso. Foi trabalhar primeiro, para fazer um dinheiro e poder, depois, pagar a sua faculdade. Vai começar fazendo Ciências Contábeis (“Psicologia vai ficar para depois”). Vai começar ano que vem. Já pode investir na sua faculdade hoje.

Ele é aquele, da familia, o primeiro que fará uma graduação (e vai concluir, ele sabe). Quer sair da comunidade, quando acabar a sua graduação. Vender a sua casa e ir morar em Del Castilho, num apartamento, com a sua esposa. E dar uma vida melhor para os filhos.

– Já tem filhos, Breno?

– Não, mas quando eu tiver.

Seu avô, que também é militar aposentado, comprou um terreno e vão dividir. Uma casa para Breno e a esposa. Outra casa pros avós. Estão construindo ainda. Vai ter piscina pras crianças todas (os seus filhos, que ainda virão).

Ah, e quando tiver acabado a graduação, e estiver pagando o seu apartamento de Del Castilho, vai pagar a faculdade da mãe, de Direito. Ela é a mulher mais inteligente que ele já conheceu. Hoje em dia, é caixa de uma farmácia na Tijuca e não pôde realizar o seu sonho (de ser Advogada), pois teve os filhos cedo. Ele, aos 21, é o mais velho de 4 irmãos.

Ele vai estudar, vai dar uma vida melhor para seus filhos. E, quando acabar, vai se mudar com a esposa pra fora da comunidade, e ajudar a realizar o sonho da mãe.

Quando a mãe se formar em Direito, vai poder sair de trás do caixa, ter um emprego bom, e poder pagar a faculdade das suas irmãs, que estarão crescidas.

E ele, apesar de morar na comunidade e lá ser perigoso, ele gosta. Mas quer uma vida melhor, sem violência, para seus filhos. Por isso vai pro apartamento. Todo mundo diz que apartamento é ruim, que não tem quintal. Mas a casa de Araruama está aí pra isso. Vai ter a piscina pra todo mundo brincar! Final de semana vai todo mundo pra Araruama. As irmãs, as crianças, a família toda.

Eles são muito unidos. Tem um churrasco por mês na lage do avô. Um dá a carne, outro a linguiça, outro a cerveja (ele não bebe, mas tem gente que bebe e gosta, né?), outro dá o sorvete, e assim a gente vai se ajudando e comemorando o estar junto uns com os outros.

Quero dizer que saí do carro profundamente emocionada com a história do Breno.

Quantos Brenos cruzam por nossos caminhos?
Quantos Brenos dirigem nossos Ubers?
Quantas mães de Brenos são caixas de farmácias que compramos remédios?
E sequer paramos para ouvir as suas histórias?
Ficamos plugados nos nossos stories-de-cada-dia, ou nos nossos livros e perdemos o olhar, a troca, o aprendizado com o outro?

Breno, obrigada por compartilhar sua história comigo. Como eu disse que ia escrever sobre você, eis aqui. E ainda digo: quero conhecer seus filhos, e te dar os parabéns pela formatura em Ciências Contábeis. Apesar de ter dialogado pouco mais de quinze minutos com você, você me inspira nos seus objetivos, luta e garra.

E espero que isso se repita com as pessoas que cruzarem seu caminho!

O que é o sofrimento?

O sofrimento pode ser físico, emocional ou espiritual. E grande parte dos sofrimentos (dos últimos 2.000 anos!) poderiam ter sido evitados se o materialismo não tivesse imperado no ser humano e no Ocidente a ponto de verdades milenares serem tratadas de forma preconceituosa como crendice ou bruxaria. A gente sofre porque sente. E sente muita coisa. O tempo todo.

O sofrimento é uma consequência de muitas causas esquecidas ocorridas em algum momento da nossa vida. É quase um esquecer de si mesmo. E isso pode gerar, no ser humano, desequilíbrios emocionais e espirituais e, por consequências, manifestações orgânicas, como as somatizações no corpo (e nas emoções).

O sofrimento é um ensinamento, uma pedagogia divina e humana, para a evolução de todos nós. Algo como uma reação de justiça para que possamos, com isso, o aprendizado a partir dele. Causa dor / sofrimento para parar, olhar, e aprender com ele,. A partir da consciência e do trabalho terapêutico, é possível olhar para o sofrimento, cuidar e evoluir, transmutar.

(Estou fazendo um curso de Florais de Bach e este foi um dos exercícios do Módulo I, que escrevi e me fez pensar para vir aqui trazer para vocês…)

A pressa ou a gentileza?

Para quem está me lendo pela primeira vez, explico.

Eu ando na rua (no transporte público, principalmente), observando pessoas. Quase todo o tempo.

Hoje, estava no ônibus usual de sempre. Eram 6:40 da manhã, indo pro trabalho, e vi uma cena. Desta vez, no ponto de ônibus. Durou poucos segundos.

Uma criança, uma menina, uniformizada e de mochila. Por volta dos seus sete anos. Ia pegar o ônibus atrás do meu.

No mesmo ponto de ônibus, uma mulher (indo para o trabalho? provavelmente atrasada?) ia pegar o ônibus em que eu estava.

Uma correu para um lado. Outra correu para o outro. E a mulher deu um encontrão na criança. Um esbarrão que quase a jogou longe. Ela – a menina – quase se desequilibrou e caiu. E ambas continuaram correndo – em sentidos opostos – em direção aos seus transportes. Às suas vidas.

E na hora pensei: quanto vale o tempo? A pressa? A gentileza?

Não vi um olhar – sobretudo da mulher – para com a criança. Ou um sorriso. Ou um pedido de desculpas. Nada.

O objetivo era pegar o ônibus. Ou algum outro (não sei). Parecia atrasada (pela pressa).

E entendo que não precisamos ser psicólogo(a)s para olhar para o outro. Para esta cena.

O quanto da nossa pressa (e do nosso tempo, e dos nossos compromissos) fecha o nosso olhar para com o outro? O quanto a nossa vida corrida, atribulada, nos deixa menos gentis (e educados)?

Ao mesmo tempo, lembro de um vídeo compartilhado no Facebook (não sei de quando é, mas o assisti ontem) em que uma mulher pára o seu carro no meio da rua reclamando das agressões que sofre do marido. Alguém gravou este vídeo. Ele estava na rede social. O vídeo tinha a duração de cinco minutos. A mulher esbravejava que o companheiro a estava agredindo. Que ela corria risco de vida (e esta mulher morreu, vítima de violência muito brutal). No tempo que durou o vídeo, não vi uma pessoa sequer parando e perguntando “oi?”.

Em época de compartilhamento, de likes, de seguidores, de insta, stories, vale mais o vídeo compartilhado (que vai gerar likes e seguidores e visibilidade) do que o anonimato do olhar e da ajuda?

Não precisa ser da área de humanas, de nenhuma profissão X ou Y para ter um olhar empático ou um olhar atento para quem cruza pelos nossos caminhos.

Em época de Setembro Amarelo, é preciso mais olho-no-olho. É preciso sair da rede social, da virtualidade, dos seus smartphones para observar mais o outro e nós mesmos. Um olhar atento para o outro é aquilo que pode nos ensinar a crescer.

[Devo dizer que na observação desta manhã, eu já fui esta mulher (e ainda sou). Na minha pressa, excluo meu olhar para quem está no caminho. E também já fui (sou) esta criança que, algumas vezes, na minha lentidão e no meu tempo mais despretencioso, já levei encontrões de outros e atrapalhei pressas alheias, e fui embora para o meu caminho sem olhar para trás].

O mais importante não é ser uma ou ser outra. Este aqui não tem gabarito. Não têm certos e errados.

O mais importante – e essencial – é o olhar para o outro e, sobretudo, para si, e ver de que forma podemos construir um nós-mesmos-melhor.

Sobre o distanciamento e aproximação do outro

Eu e minhas histórias do ônibus. São nessas horas que vejo a humanidade, a sociedade, e as pequenas “psicologias” e afetos do dia-a-dia.

Era um sábado e eu estava voltando do Centro do Rio para casa.

Com o ônibus vazio, sentei logo à frente, e peguei o livro na mochila. A senhora atrás de mim cantava e eu preferi mudar de lugar para ir para um lugar mais silencioso possível e ler sem interrupção.

A primeira pergunta é: até onde vai a nossa (in)tolerância com o barulho das pessoas em volta da gente? A senhora podia estar cantando por diversos motivos. Mas, o principal deles é: não tinha a ver comigo. Mas acaba que eu faço ter a ver comigo e vou para longe.

E, sentada longe da velhinha cantante, consegui terminar o livro que estava lendo. E eis que uma senhora – outra senhora – senta ao meu lado. Era muito, muito magrinha e pequenininha. Não a vi chegando, até ela se sentar.

Eu estava na janela e ela sentou no corredor, e sentou mais na beirada possível, deixando um espaço invisível entre nós duas.

– Com licença, posso me sentar aqui ao seu lado?

– Pode sim. À vontade.

E me vi dando um sorriso tímido.

E eu percebi a delicadeza da velhinha tão pequenininha. E o sorriso dela, tão tímido quanto o meu.

Tive vontade de envolvê-la nos braços, e deixar ela mais pertinho de mim. Aquele espaço entre nós duas era maior do que eu podia suportar. E eu nem me lembrava mais da velhinha cantante lá da frente.

A minha velhinha (sim, ela já passou a ser minha), tirou uma garrafa d’água de dentro da sua bolsa. Tomou um gole e…

– Você aceita um pouco da minha água?

– Não, muito obrigada.

E o distanciamento ia se estreitando e eu já tinha vontade de não mais ficar no meu silêncio (egoísta) do meu livro e de poder dialogar com a minha velhinha, que, agora, já estávamos bem próximas, apesar do espaço vazio ainda entre nós, no banco do ônibus.

E me lembrei que mudei de lugar para a velhinha cantante não incomodar a minha leitura.

Face o oferecimento da água, eu já estava tão tão encantada pela minha velhinha que não iria adiantar mais ler, mesmo nós duas em silêncio, uma ao lado da outra.

Fechei o livro.

– Desculpe! Estou atrapalhando a sua leitura.

– Não… é um prazer.

E, se querer, a minha velhinha encostou parte do seu pé no meu pé. Numa das curvas do ônibus.

E, apesar do diálogo, pela primeira vez, nos tocamos.

– Me desculpe! – ela quase gritou.

E beijou o meu ombro. De novo: beijou o meu ombro!

Vejam só. Ela encostou em mim. Se desculpou pelo encosto. E me beijou. Não é maravilhoso isso? (O quanto de olhar e de afeto deixamos passar no ônibus? Nas pessoas estranhas, desconhecidas, velhinhas?) Eu apenas sorri e não a beijei de volta. Não sei bem por quê. Talvez por timidez. Apesar do meu desejo…

Saltamos no mesmo ponto e, ela se despediu de mim com um beijo estalado de longe. Eu me aproximei e, desta vez, nos abraçamos.

– Obrigada! – eu disse.

– Desculpe! – ela dizia.

E eu ficava me perguntando: desculpe pelo quê? Por ter sido gentil de oferecer a água? Pelo distanciamento ao se sentar ao meu lado e pelo beijinho no meu ombro? Por ter interrompido a minha leitura? (O nosso diálogo e o beijo foram muito melhores e mais enriquecedores do que qualquer leitura, minha velhinha…)

E penso no quanto deixamos as pessoas passarem pelos nossos dias. Pelos transportes públicos. Pela vida. O quanto de olhar devemos ter para com o outro e, também, sobretudo, para com nós mesmos? O olhar para fora também é um olhar para dentro. Ver o outro é me ver também.

Pensar nesse distanciamento – aproximação me vejo como, muitas vezes, estou distante de mim, e preciso estar mais próxima de mim. Ou o quanto preciso me distanciar do livro e me aproximar de quem senta ao meu lado. Ou de não me incomodar com os ruídos alheios e tornar a percepção mais aguçada para que o som do outro me invada. Me ensine. Para que eu receba e eu possa, também, dar beijos e águas e afetos.

É melhor o contato do que a comida

Hoje, na hora do almoço, eu tinha monte de coisas para resolver com o Marido. Quase sempre almoçamos juntos. Sim, apesar de sermos casados, e de nos vermos todos os dias, gostamos também de, no meio do expediente, partilharmos o alimento.

E aí, pelo pouco tempo, fomos fazer um lanche na Parmê, ali na Rua do Rosário.

Fizemos o nosso pedido e pouco depois entrou um menino, de por volta de seus oito, ou dez anos, pedindo um prato de comida ao Marido. Era engraxate, pelo Centro do Rio. Carregava aquele caixote de madeira, embaixo do braço.

– Sim, eu pago, ele disse. Escolhe o seu prato.

Era um painel grande, com diversos cardápios, com fotos e tudo.

O menino escolheu qual queria.

– Arroz, feijão, farofa, batata e carne. Quero este, ele disse.

O Marido foi, pagou, e entregou a ficha para o menino.

– Sua senha é a 05. Fica atento.

E fomos comer – eu e Marido – e o menino aguardando a sua senha ser chamada.

Enquanto ele esperava, percebi que outros dois meninos – também engraxates – aguardavam sentados no meio-fio, do outro lado da calçada.

Chegou o prato do menino, ele mesmo foi ao balcão buscar o prato, a bebida, e se sentou à mesa da Parmê, para comer sua comida.
Fez um sinal para os amigos do outro lado da calçada.

Os amigos foram embora. Desviaram o caminho e seguiram o caminho deles. Distante do menino que, agora, se alimentava.

Este, que se alimentava, deixou o prato – cheio de comida – e sumiu. Foi atrás dos outros dois.

Muitas pessoas na Parmê ficaram “chocadas”. E tenho certeza (porque eu mesma pensei) que pensaram: ingrato! O rapaz deu o prato de comida, a bebida, e agora ele deu uma garfada e foi embora! Por isso que não adianta, bla bla bla!

Segundos – que poderiam ter durado minutos, voltam os três meninos. O menor, que estava comendo até então, deu o seu lugar para um dos dois amigos. Este se sentou no lugar anteriormente do menino, e comeu a comida do prato dele.

Depois, veio o terceiro, e comeu um pouco também.

E os três revezavam-se pelo mesmo lugar, pelo mesmo prato de comida, pela mesma bebida.

O que fica muito claro para mim é: o menino tinha a comida, mas perdeu os amigos. Foi atrás deles. O afeto vale mais do que o alimento.

E, ele não queria e não podia se alimentar sozinho. A comida era compartilhada. Não na mesma mesa. Os três sentados juntos. Mas cada um sentado de uma vez. Comendo do mesmo garfo, da mesma faca, do mesmo copo, do mesmo prato, da mesma comida.

O comer é solitário, mas, ao mesmo tempo, é coletivo, compartilhado.

Porque, ainda que haja fome, a maior das fomes é a de afeto. É a de solidariedade. E, esta, eles estavam partilhando. E, por que partilhavam, estavam saciados.

Gentileza gera gentileza

Este texto pode parecer piegas, mas vou contar três cenas bem corriqueiras para exemplificar o que quero dizer, no final.

Cena 1.

Eu estava entrando no ônibus, na quinta-feira (sim, tem sempre uma observação de fatos cotidianos no ônibus), daqueles sem cobrador, em que tem duas roletas.

Eu passei na roleta, com o meu bilhete único.

Atrás de mim, uma senhora passou com o bilhete dela e o seu bilhete caiu num lugar de difícil acesso. Ela precisaria se abaixar, se esticar, e ficar numa posição (com o ônibus já em movimento) difícil. Eu me ofereci para pegar o bilhete para ela. Precisava deixar as minhas coisas (estou sempre carregada!) num canto, num banco, para catar o bilhete dela. Ela agradeceu e pronto.

Cena 2.

No sábado, eu peguei outro ônibus. Mesma situação. Só que agora comigo. Meu bilhete caiu lá atrás. Num lugar que pensei: “e agora?”. Parecia impossível. O ônibus fazia curvas. Eu carregada. Antes de me abaixar, pensei em qual deveria ser o movimento exato para buscar o bilhete único num lugar de difícil acesso.

Um rapaz apareceu (estava sentado em um local no ônibus que eu não vi) e não dialogou comigo. Apesar pegou o meu bilhete (ele era magro e alto e tinha uma flexibilidade e um braço comprido que conseguiu pegar), e me entregou com um sorriso belíssimo. Não trocamos uma única palavra, além do “muito obrigada”.

Na hora, me lembrei do gentileza gera gentileza, lá do profeta.

Cena 3.

No âmbito profissional, um homem (chamarei de Wilson) foi desrespeitosamente agressivo com outro (que chamarei de Hélio). Dois profissionais, mesma empresa. Hélio cometeu um erro, sem querer. Wilson foi impactado pelo erro de Hélio e foi super agressivo com ele. Algo desmedido, desrespeitoso, sem educação.

Isso tudo foi com uma certa platéia. Ficou bem feio para Wilson. Hélio ficou irritado, com razão. Ninguém merece ser tratado daquela forma. Não há justificativa plausível.

Minutos depois o celular de Hélio tocou. Wilson já tinha ido embora. Do outro lado da linha, uma operadora de telemarketing, que é uma profissão já estigmatizada por um monte de adjetivos negativos.

E o Hélio – que acabou de ser agredido pelo Wilson – foi super agressivo com a operadora de telemarketing. “Estou estressado. Não me ligue. Não quero. Você está sendo isso, aquilo, aquilo outro!” e bateu o telefone. Além de desligar o telefone, bateu com ele sobre a mesa. Literalmente.

E lembrei: é mesmo, gentileza gera gentileza.

O que sobra disso tudo, minha gente?

O que quer que façam conosco, ou o que falem conosco, ou como nos tratem, não deve nos influenciar no tratamento para com o outro.

A ética e a gentileza e a educação devem ser inabaláveis.

Se você – psicólogo – teve um dia ruim no trânsito, não significa que deve tratar o paciente da forma X ou Y porque o motorista do Uber não foi como queria.

Ou se você – vendedor – perdeu uma venda, ou foi desrespeitado pelo cliente, que atendeu, o próximo não deve “pagar o pato”.

Ou se você – qualquer que seja a sua profissão: taxista, vendedor, telemarketing, professor, copeira, advogado, psicólogo – deve lembrar que o outro – o próximo passageiro, a próxima turma, o próximo cliente, ou paciente – não deve ser tratado da forma X ou Y por causa da forma que alguém tratou você. A ética, a gentileza e o respeito devem ser a base da nossa conduta pessoal e profissional.

A forma como as pessoas nos tratam falam delas mesmas. Não deve nortear a nossa ação, conduta.

O que deve ser repetido e passado adiante é o olhar gentil ao outro. Afinal de contas, é isso mesmo: gentileza gera gentileza. E, parafraseando a piada, seria ótimo que a gentileza educasse a “gente lesa”.

O motorista não sabia o caminho, e a metáfora com a vida real

Todos os dias, ao ir para o trabalho, sempre no mesmo horário, sempre o mesmo ônibus, quase sempre o mesmo motorista.

Na última quarta-feira, foi um pouco diferente. Eram 07:15h. Horário de sempre. Ônibus de sempre.

O motorista, no entanto, não lhe pareceu familiar. O ônibus estava quase cheio. E ela ouviu o motorista dizer:

– Desculpa, gente. Eu sou novo nesta linha.

E, antes de virar a cada curva, a entrar em casa esquina, ele perguntava: “é aqui?”, “é este o caminho?”.

Tirando as questões organizacionais de lado, de colocar um motorista para conduzir um ônibus sem conhecer previamente o trajeto, ou treinamento… todos os passageiros do ônibus ajudavam o novato.

– Sim! É na próxima esquina! Vira ali à direita!

E o motorista, continuava perguntando, a cada rua que precisava entrar. E os passageiros, ajudavam-no, dando o caminho correto.

Por outro lado, por estar conduzindo, o motorista perguntava sem olhar para trás, para os passageiros que o conduziam. E tinha uma direção segura. E os passageiros, por outro lado, não tinham apreensão, nem medo de o trajeto ser desviado sem querer.

E fiquei pensando em o quanto esta cena reproduz a metáfora da vida…

O quanto guiamos a nossa vida sem, muitas vezes, saber o caminho? Qual o caminho certo e o errado?

E o quanto precisamos da ajuda de pessoas que não podemos ver? Que precisamos ir sem olhar para trás? Por outro lado, também, quem está atrás, também nos guia.

Sejam as pessoas do nosso passado (que ficaram para trás por algum motivo) que nos ensinam sobre quais caminhos devemos seguir. Sejam as pessoas dentro de nós (dentro do ônibus): aquelas pessoas que já fomos. Sobre o nosso próprio passado, sobre aquele ser que cada um de nós já foi e que não queremos olhar para trás, mas que nos ensina a que trajetória seguir.

E, ainda assim, na vida real, quando aquele monte de gente desceu comigo, o motorista foi agradecendo a todos que desciam e tinham ajudado ele até ali.

Uma pessoa se aventurou:

– Agora o senhor segue em frente e pega ali, ó, aquela rua…

– Obrigada, moça. Mas daqui eu já sei. Daqui eu já conheço o caminho.

Deve ser porque agora ele estava sozinho no ônibus. Inteiro dele mesmo. E, agora, o caminho já era conhecido.